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Eixos e aproximações

Foto do escritor: Renata PelegriniRenata Pelegrini

Atualizado: 10 de mar. de 2024



O CURADOR CARLOS EDUARDO BITU CASSUNDÉ, APÓS 18 MESES DE ENCONTROS ONLINE COM RENATA DURANTE O TEMPO DA PANDEMIA DE COVID-19, CONCLUIU ESSE PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO COM A ARTISTA POR MEIO DE UMA ENTREVISTA, REALIZADA EM ABRIL DE 2022. NOS DIÁLOGOS VIRTUAIS TIVERAM A COMPANHIA DO TAMBÉM CURADOR MARCIO HARUM, COM QUEM DISCORRERAM SOBRE ARTE E A PRODUÇÃO ARTÍSTICA DE PELEGRINI.


 

01 Para iniciarmos esta conversa gostaria que você refletisse sobre alguns eixos e aproximações que atravessam a sua produção e pesquisa: índices que compõe a sua poética desde os trabalhos iniciais e se reinventam por meio de uma natureza circular. Nesse contexto, trago também os seus interesses com a linguagem, com os gestos caligráficos e a arte oriental. No entanto, há um dado potente dentro dessas construções que é o de uma natureza ancestral, que como num caleidoscópio, ativa diferentes aspectos da memória. Como todas essas questões e interesses confluem neste primeiro lugar de produção?

O seu apontamento sobre a natureza circular do trabalho é um dos índices cada vez mais evidentes no meu processo artístico. Materiais e sensações, imagens e poesia, estórias e desejos entrelaçam o visível e o não-visível através de relações onde minhas diversas expressões transitam. Há pesquisas que se conectam pelo desdobramento de caminhos do fazer. Há outras que estão unidas pelos instrumentos comuns que as provocaram.  As relações estão no âmago do trabalho atravessando temporalidades. Elas circulam, reconectam ou dissolvem-se criando a dinâmica que percebemos e índices que se sucedem. O gesto é um desses índices que existe como forma de proceder. Da linguagem ao corpo ele é uma prática de aproximações.

 

Observar de perto o gesto de comunicação gráfica foi a oportunidade que me conectou às caligrafias históricas feitas à mão, quando como professora trabalhei com palavras e extensas bibliotecas. Num intervalo, nos anos 90, morei em Nova Iorque, nos EUA, e aprendi alfabetos medievais ocidentais: a rigidez das linhas, a marcação de espaços, traços de rigor por meio da pena e do nanquim. Em outro momento, em meados de 2000, residi em Milão, na Itália, e estudei caligrafia oriental. Nesse treino, iniciei o uso do pincel, um mediador no exercício do corpo para a expressão do movimento em conexão com a energia do cosmos. Decorre desse último momento, meu interesse pela pintura expressiva que aprendi com outros artistas em Lugano, na Suíça. 

 

Através da arqueologia da memória, mãos que escreviam, mulheres que teciam, colocaram uma lupa na manualidade e fizeram minha expressão em arte ser notada pela presença tátil e gestual nas telas, durante a graduação em Artes Plásticas, concluída em 2010, já de volta ao Brasil. A expressão orgânica, instaurada na pintura pelos gestos caligráficos mais líquidos e moles da arte oriental, amalgamava-se com vestígios dos treinos de vigor da pena de caligrafia ocidental, e adicionava novos caminhos. Foi o que ocorreu com as cores, que de pouco em pouco, foram convivendo com o nanquim e criando uma presença nova.

 

Nomeio essa construção plural como um milieu de relações: um ambiente que me interessa para dialogar sobre novas formas de habitarmos este mundo. E por isso, investigar através de laços é alicerce para tatear complexidades e coabitar tempos que transcorrem ao meu redor. Foi no gesto das mãos que encontrei uma linha_ por vezes metafórica, por outras vezes, de lã, de giz, de carvão, de óleo preto ou cravada no metal _ certamente uma linha poética, que consegue acessar o universo que está no ancestral. A linha é (re)conexão. 

 

A ancestralidade me aproxima da natureza e de memórias, e ativa a ação de cuidar de um fluxo. No fazer, essa questão se apresenta como amálgama, aproximação e rastro. E assim, quando me expresso no bidimensional, esses índices estão nos espaços deixados incompletos, nas imagens de portas e janelas, ou nos terrenos instáveis_ marcadores a sugerir tanto a continuação, como a transposição para um outro lugar a desvendar. No tridimensional, minha expressão encontra a morfologia ambígua de objetos fabulados. No espaço projetado, a expressão está na luz e na sombra, como binômios complementares. 

 

O exercício de buscar vínculos está em minha pesquisa desde 1995 e o surgir e submergir de abordagens e expressões é resultado dessa ação. Revendo esse corpo de trabalho, posso dizer que esse é seu fluxo. Investigações, materiais e linguagens se desdobram produzindo permeabilidade entre tempos e pesquisas. E no processo, os vetores primordiais de ancestralidade e circularidade, apontam para vestígios e referências que estão no corpo interno da obra ou que ecoam pensadores contemporâneos que estimulam minhas demandas poéticas. Astrida Neimais (1) e Ailton Krenak (2) discutem, por lugares distintos, questões que estão presentes nos contextos pelos quais me interesso, como o feminino, que se articula o terceiro vetor em minha investigação

 

Desse limiar feminil resgato instrumentos para minhas experimentações. Cuidar dos outros, do entorno e do imaterial era o que eu aprendia das mulheres. A me alimentar com estórias de ciclos das estações, das águas, dos laços femininos, tradições e cânticos esteve minha avó portuguesa, nascida em uma aldeia (3) e para quem estar e agir era um fluxo; uma construção de um meio impalpável, e ainda assim, sempre expansível

 

A palavra aldeia é um ótimo ponto de referimento para a linguagem, que viria a me seduzir como estudo acadêmico em minhas graduações em Letras, Educação e Tradução-Interpretação. E foi a partir da etimologia dessa palavra, tecida do árabe aldeamento, do galego aldea e do mirandês aldé, que o sentido da raiz genealógica se (re)encontrou na parte ibérica espanhola que também é natureza em mim. Aldeia é o vocábulo que descobri unir desejo, memória e raiz (4).

 

Uma das séries mais potentes, na qual trabalho ainda hoje, nasceu desses entrelaces e nós iniciais fundantes do mundo ancestral e da coexistência. É a série RADIX que aparece e reaparece em expressões circulares no meu processo. 


 

NOTAS 

 

(1) Astrida Neimanis, sobre o fluxo da água em nosso corpo e nos oceanos, professora da universidade de Sydney e autora do livro Bodies of Water , cujo fragmento está em https://www.academia.edu/28107193/Bodies_of_Water_Posthuman_Feminist_Phenomenology_link_to_Open_Access_HTML_

 

(2)  Ailton Krenak, sobre o futuro ancestral, cuja narrativa começa com a avó do povo do Rio Negro. Assistir ao vídeo no Youtube, série Flecha Selvagem (2021), Episódio 1: a serpente e a canoa.

 

(3) Aldeia _palavra que minha avó usava para designar o seu lugar de origem em Portugal próximo da fronteira com a Espanha, onde se fala o Mirandês; um pequeno povoado.

 

(4) Raiz se fez importante também quando pensei no fluxo de saberes que havia na terra antes de ser Brasil. Na Universidade de São Paulo, estudei tupi-guarani para me aproximar dessa vontade de me entender como natureza e fazer o movimento em direção à origem.

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